Monteiro Lobato: Dona Benta e a representação do narrador

Apresentando Dona Benta como elemento mediador entre Monteiro Lobato – seu autor – figura detentora de grande conhecimento devido ao fato de ter lido praticamente todos os clássicos em tenra idade, e a personagem-avó, mentora e responsável pelos demais personagens que habitam o Sítio do Picapau Amarelo, demonstrando sua importância no papel de narradora em obras específicas.

Por Edlena Franklin

A autêntica literatura infantil brasileira surgiu pelas mãos de Monteiro Lobato, criando entre nós uma estética inovadora, estabelecendo um padrão do texto destinado à criança, estimulando-a a ver a realidade através de conceitos próprios (conforme Lígia Cademartori, 1986, p.43-51).

Quando se pensa em Lobato, imediatamente vem à mente o Sítio do Picapau Amarelo e seu universo bucólico, repleto de fantasia e liberdade – no pensar e no agir. Juca – como José Bento Monteiro Lobato era chamado em pequeno, cresceu num ambiente semelhante em muitos aspectos: tinha avó carinhosa, preta cozinheira, sabugos de milho e bichinhos de chuchu para brincar, ribeirão para pescarias, caçadas com carabina e fruteiras carregadinhas para subir e se deliciar. Foi alfabetizado pela mãe e depois por um professor particular, indo aos sete anos de idade para a escola.

Com essa idade descobriu a vasta biblioteca do avô, onde se deleitou com os clássicos da literatura universal, numa época em que ainda não havia publicações para crianças. Ah, e aprontou muito também, impondo um geniozinho tirânico similar a uma certa boneca de pano (Luciana Sandroni, 1997, p. 12).

Estilo e consagração

Lobato satirizava o purismo de linguagem, defendendo uma prosa livre e coloquial que chegava ao público leitor acrescida de pitadas de ironia e frases pitorescas. Sua preocupação com sua obra não foi primordialmente estética e literária, mas doutrinária e didática. Contando com o apoio da esposa Purezinha, dos filhos e do amigo e professor Godofredo Rangel, fez ´laboratórios´ com suas obras, verificando a aceitação à sua estética, impregnada de informações coincidentes com o currículo escolar.

A escolha em colocar uma vovó como porta-voz de seus intentos educacionais trazia ar fresco a um período em que o autoritarismo masculino predominava, gerando interpretações diversas como a do escritor Marcos Rey, em um artigo que sugeria um ´matriarcado absolutista no Sítio do Picapau Amarelo, onde só as mulheres têm vez´. Rey afirmava ainda que a ausência do pai de Pedrinho e a influência das imaginações de Emília e das ponderações de Dona Benta conferiam à mulher na saga do Sítio um papel que se tivesse ´a voz grossa do macho mandão´ poria o universo lobatiano a perder (Cilza Carla Bignotto, 2006, p. 91,92).

Toda a saga do Sítio de Lobato é narrada em terceira pessoa, no discurso indireto. Quando se apresenta um momento didático e doutrinário, a personagem Dona Benta assume e atenua o que Marcos Rey chamou de ´tom autoritário´, inibidor, do discurso masculino do início do século XX. No tocante ao sujeito narrativo, Whitaker Penteado afirma que na maioria dos textos lobatianos o narrador é o próprio autor, ´que não se identifica nem justifica´. Indo por essa linha de pensamento, pode-se até interpretar como uma autocrítica bem-humorada de Lobato certa passagem de D. Quixote das Crianças em que Emília afirmava querer ser louca como D. Quixote. O homem Monteiro Lobato confunde-se com o sujeito narrativo em virtude do grau de identificação entre autor-narrador.

Mesmo quando é efetuada a ´troca de guarda´ com a personagem Dona Benta, ela continua a puxar a brasa para a bonequinha (Bignotto, 2006, p.97): Dona Benta riu-se. – É inútil, Emília. Por mais que você faça, não consegue ser louca varrida – ficará sempre uma louquinha muito querida pelas crianças em geral.

 

Pare com Emília, vovó! – gritou a menina, furiosa. – A senhora até parece o Lobato – Emília, Emília, Emília. Continue a história de D. Quixote. (Bignotto, 2006, p.97 citando Monteiro Lobato, 1978, p. 5).

 

A releitura dos clássicos

A habilidade de Lobato em enxugar as narrativas clássicas de modo a torná-las digeríveis para os pequenos leitores deixou profundas marcas em muitos que hoje estão bem crescidinhos, atuando em diversos setores como economia, política e… literatura. Outro aspecto relativo à narrativa particular de Lobato é a eventual intervenção por um leitor imaginário (o próprio Lobato) que simula um diálogo com o leitor, remetendo à linguagem oral.

No exemplo abaixo, retirado de Reinações de Narizinho, o narrador descreve o destino de sete leitõezinhos da criação do Sítio: ´O tempo foi passando e os leitões foram crescendo, e à medida que iam crescendo, iam entrando…§- Para a escola, já sei! §- Sim, para a escola do forno. §- Que horror! §- Pois é verdade. Vida de leitão no Sítio do Picapau Amarelo não é das mais invejáveis.[…] (Lobato, 1978, p. 47)

A mitologia de Lobato

Lobato rompeu com o padrão literário europeu e alavancou a produção de livros destinada às crianças. Aproveitou nossa tradição folclórica e criou uma mitologia autônoma, repetida em quase todas as narrativas. Suas críticas à escola serviram para uma reflexão sobre a literatura como instrumento de manipulação da mente da criança pelo adulto, através do questionamento da veracidade das convenções impostas pela sociedade.

A voz da modernidade

Para um autor nascido no tempo de D. Pedro II, no qual ainda havia escravidão e crianças tratadas como adultos em miniatura, sua obra abriu portas para uma modernidade idealizada, na qual ele lançou as sementes de um Brasil culturalmente emancipado, desenvolvido e democrático, a começar com seus pequenos leitores de então. Imprime-se a voz de nossa brasilidade.

FIQUE POR DENTRO

Personagem e representações

Das inúmeras personagens do universo literário infantil de Monteiro Lobato, uma traz em si a função de ir além do que se espera de uma personagem infantil, que é entreter ou divertir: Dona Benta representa o narrador que dialoga, educa e transforma, o que vai de encontro aos objetivos do autor Monteiro Lobato, que pregava aos quatro ventos a necessidade de proporcionar educação de qualidade às crianças brasileiras pelo conhecimento atrelado às boas leituras.

Dona Benta foi e tem sido ainda um instrumento de propagação da narrativa dialógica, que ao mesmo tempo em que instrui, respeita a inteligência e incentiva o interesse da criança. Contar uma história a uma criança, ora parafraseando um texto escrito ora criando um novo, envolve a necessidade de tornar esse texto compreensível para uma dada faixa etária. Utilizar recursos de entonação de voz, bem como permitir digressões de cunho esclarecedor relativo ao tema da narrativa, compõem o perfil do educador voltado a introduzir o gosto pela literatura nas séries iniciais.

A análise detalhada do papel de Dona Benta no contexto narrativo-dialógico das obras infantis de Lobato promove a reflexão acerca da necessidade de contarmos com professores preparados não somente pelas novas teorias psicopedagógicas que surgem a cada dia, mas com professores-leitores, apreciadores da leitura a ponto de contagiar novas gerações, disseminando o exercício prazeroso do aprender.

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